Por que ainda há tão poucos psicólogos escolares atuando no Brasil?
Fundamentais para apoiar um ambiente mais acolhedor e dialógico, com ações para estudantes e equipes, profissionais enfrentam sobrecarga
A escola onde você atua ou estuda tem um espaço seguro para expressar opiniões? Existe uma prática consistente de escuta ativa ligada às dimensões socioemocionais, seja quando um professor precisa compartilhar um impasse da sala de aula ou quando os alunos trazem alguma questão comportamental? Essas perguntas vieram da mesa “Diálogos corajosos – Comunicação Não-Violenta na educação”, que aconteceu na Bett Brasil, evento de inovação em educação, na última semana. Tais reflexões poderiam facilmente ser ouvidas em uma conversa sobre o papel do psicólogo escolar, profissional que atua com a prevenção e promoção de saúde mental na escola.
“A escola é reprodutora do social que está lá fora. Temos racismo, misoginia, homofobia, e a própria maneira como a escola é estruturada é violenta, porque parte do princípio que a hierarquia é o certo e a maneira correta de a gente se relacionar. Quando você está dentro dessa estrutura, muito é silenciado”, afirmou Gessyka de Sousa Silva, psicóloga educacional do IFCE (Instituto Federal do Ceará), uma das convidadas do debate. “É um desafio conseguir espaço e tempo dentro das escolas para fazer conexões humanas”.
Para apoiar a mudança de cenário e auxiliar as equipes escolares na construção e manutenção do diálogo e do acolhimento, entra a figura do psicólogo escolar. De acordo com o Conselho Federal de Psicologia, no documento ”Referências técnicas para a atuação de psicólogas(os) na educação básica”, a psicologia pauta reflexões sobre a complexidade das relações sociais nos processos de aprendizagem. “Ao lidar com os sujeitos e suas subjetividades, o psicólogo, em trabalho conjunto com professores e a comunidade escolar, pode possibilitar o reconhecimento das dificuldades de aprendizado, evasão escolar, violência nas escolas, dentre outros, que são permeados por vivências de extrema pobreza, racismo, discriminação de gênero e de orientação sexual”, descreve o material.
As escolas devem ir além dos conteúdos das disciplinas: são responsáveis por desenvolver habilidades e competências para que os alunos sejam educados e preparados para a vida, conforme apontam as Diretrizes Curriculares da Educação Básica e a BNCC (Base Nacional Comum Curicular), “Neste contexto, o psicólogo escolar vai colaborar em várias situações. Somos facilitadores de um processo que ajuda a escola a funcionar com um suporte emocional para os educadores, para os alunos e também para os responsáveis que precisam de orientações, de como lidar com algumas situações para colaborar no processo de ensino e aprendizagem”, afirma a psicóloga clínica e escolar Aldynne Fernandes.
De acordo com Aldynne, o período de distanciamento social mostrou com todas as letras a importância da promoção da saúde mental e de preparar toda a comunidade escolar para os desafios da vida. “Infelizmente, quanto mais o tempo passa, mais temos recebido notícias ruins, que tiram a escola de um lugar seguro para um lugar de amedrontamento, de medo, de crimes acontecendo a todo momento, casos de bullying aumentando… Como educadores, precisamos refletir sobre o que está acontecendo e o que podemos fazer.”
Para ela, a resposta está na prevenção e promoção da saúde mental dentro da escola. “Nós, psicólogos escolares, podemos colaborar muito: no desenvolvimento de habilidades para a vida, no suporte emocional, na orientação profissional para que os alunos tomem decisões mais responsáveis e seguras. Podemos dar suporte aos professores, com orientações para cuidarem de sua saúde mental e apoiarem os alunos em casos de dificuldades, frustração, crises de ansiedade, bullying, questões de sexualidade… A proposta é estabelecer vínculos e criar laços de confiança”.
Psicologia escolar x psicologia clínica
Com mais de trinta anos de carreira, a psicóloga Valéria Braunstein, professora doutora em educação e saúde na infância e adolescência pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, conta ao Porvir os principais desafios da área e uma confusão comum relacionada à psicologia escolar: não se trata de um profissional clínico. Caso seja necessário, há o encaminhamento para o tratamento terapêutico fora da instituição.
“A sociedade acredita que o psicólogo trabalha apenas com pessoas que têm problemas da ordem da saúde mental. Ainda escutamos por aí: ‘Ah, nunca vou fazer terapia porque eu não sou louco’. Sendo que o processo terapêutico é, sobretudo, de autoconhecimento, onde vamos adentrando cada vez mais em processos específicos da nossa identidade e, a partir deles, nós nos compreendemos melhor, conseguimos adquirir mais controle sobre as coisas que queremos, sobre como encaminhar nossa vida dentro de um contexto histórico, social e econômico”, explica.
Diferentemente do atendimento clínico, a atuação do psicólogo escolar precisa estar atrelada, principalmente, à psicologia social, que estuda a relação do indivíduo com a sociedade, a fim de entender o território e o contexto que aquela escola está inserida. “Saímos da universidade generalistas e precisamos nos debruçar nas nossas áreas de atuação. Esse profissional vai entender a dinâmica das instituições e como se comportam e se sentem as pessoas que nelas habitam e convivem. Ele vai olhar para as demandas dos alunos e dos educadores para perceber como se sentem; vai circular nesta dinâmica e alcançar as famílias e a comunidade no entorno. Ele precisa estar apropriado de tudo isso”, diz Valéria.
Ela exemplifica: uma escola de um bairro nobre é diferente de uma escola da periferia. Muitas vezes, os alunos têm de se deslocar porque os pais trabalham nas regiões mais abastadas da cidade. “Isso pode se apresentar de um modo muito violento, porque violência não é só arma. Existem as violências simbólicas e sociais. Estar em um espaço que não me respeita no meu jeito de ser e no meu modo de viver pode ser algo muito violento”. Por isso, o psicólogo escolar precisa ter um olhar social, atento para todos os tipos de violência (simbólica, física ou psicológica) que podem aparecer dentro do ambiente escolar.
“Não se trata de chegar na escola e chamar para um atendimento terapêutico. O profissional vai debater com o corpo docente, com a comunidade e com os serviços de saúde, no Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, de modo a desconstruir determinadas ideias preconcebidas. Junto com a equipe da gestão da escola, vai criar um ambiente mais acolhedor e inclusivo para todas as pessoas”, complementa Valéria.
Na mesma linha de raciocínio, a professora universitária Rozi Gonçalves, que coordena o curso de pós-graduação em psicologia escolar e educacional na Universidade Cruzeiro do Sul, em São Paulo (SP), ressalta o quanto o psicólogo escolar deve se envolver com o PPP (Projeto Político-Pedagógico) da escola para criar ou apoiar projetos já existentes.
“É uma perspectiva de um trabalho mais institucional, que envolve a escola na própria mobilização das suas forças, das suas potências, dos seus saberes em busca para aquela questão que está sendo vivida. Isso demanda tempo, porque você tem a escuta, mobilização, o agenciamento de todos os envolvidos. É muito mais do que pegar uma criança e encaminhá-la para a rede de saúde”, comenta Rozi “Essa lógica é muito simplista e não trará modificações ou transformações de quem vem fazendo esse processo de construção do lugar e do papel do psicólogo escolar, que entende a potência da escola.”
Sobrecarga e desafios
Representante paulista da Abrapee (Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional), Rozi, que também faz parte das comunidades do Porvir no WhatsApp, aponta a dificuldade de entrada desses profissionais nas escolas públicas, que acontece via concurso público ou contratações terceirizadas e temporárias. “A descontinuidade é um fator que tem sido problemático para a execução da Lei 13.935, que torna obrigatória a presença do psicólogo escolar e do assistente social na equipe da escola”, comenta.
O que diz a lei?
Aprovada em 2019, a Lei 13.935 torna obrigatória a presença de psicólogos e assistentes sociais nas equipes multiprofissionais das escolas. O CFP (Conselho Federal de Psicologia) reconhece esta lei como um instrumento crucial para o fortalecimento de um sistema educacional público inclusivo, de alta qualidade e que assegura direitos. As “Orientações para a regulamentação da Lei 13.935” destacam que a presença desses profissionais contribui para:
– Desenvolver, implementar e revisar currículos, projetos pedagógicos e políticas educacionais;
– Aperfeiçoar métodos, técnicas e ferramentas que auxiliam na formulação e no replanejamento de planos educacionais;
– Promover a qualidade de vida na comunidade escolar, com foco no combate a preconceitos e à violência.
“Lutamos por essa lei por mais de 20 anos. Ela é uma conquista. O trabalho interdisciplinar sempre é muito rico em qualquer campo, pois adotamos uma visão holística e integral no processo de ensino-aprendizagem”, reforça Rozi.
Trata-se de uma construção importante, mas não se pode esquecer que ela é inicial, diz a professora. “Se a gente parar para pensar quando o SUS (Sistema Único de Saúde) começou e como se fortaleceu até se consolidar, isso levou anos também. Precisamos acalmar o coração e entender que estamos no começo de um processo no qual ainda vão acontecer muitos erros, até que a gente acerte e entenda, perceba vontade política e as destinações orçamentárias corretas”, opina. Neste link do Conselho Federal de Psicologia, há o detalhamento das fontes de recursos e outras respostas para dúvidas frequentes relacionadas à legislação.
Recentemente, a contratação de 550 psicólogos para 3,5 milhões de alunos na rede estadual de ensino de São Paulo escancarou a sobrecarga de trabalho desses profissionais. De maneira ideal, um psicólogo escolar deveria atender, no máximo, duas escolas próximas. “Ele não precisa estar nas escolas todos os dias, e isso nem é recomendado, porque ele é um profissional de apoio à escola, que faz a circulação de rede”, diz Valéria Braunstein.
E um recente levantamento feito pelo jornal O Globo, com base no Censo Escolar de 2022, mostra que a precariedade se espalha por todo o país: o número de psicólogos nas escolas brasileiras corresponde a apenas 0,05% do total de estudantes matriculados, ou seja, menos de 0,1% — são 24.434 profissionais para 47,4 milhões de alunos da educação infantil e dos ensinos fundamental e médio.
“Muitas vezes, as secretarias contratam o profissional de psicologia para atuar na educação, mas sem condições de trabalho. Por vezes, um só psicólogo atende 32 escolas sozinho e assim, infelizmente, o trabalho não funciona. Creio que toda a comunidade de educação precisa reavaliar e entender a importância desse profissional na área de educação”, complementa Aldynne Fernandes, que também destaca a importância do aprendizado contínuo desses profissionais.
Caminhos e parcerias
Para atuar efetivamente nas escolas, os psicólogos precisam dominar questões pedagógicas. “O currículo da pedagogia dialoga com algo muito contemporâneo, que são as questões de valores sociais e morais que atravessam a escola no seu cotidiano. Esse profissional deve estar despido de preconceito, de modelos padronizados da escola e da educação. A escola é um microssistema da sociedade”, reflete Rozi Gonçalves.
Valéria Braunstein também reforça a necessidade de atualização constante. “É preciso ter conhecimento básico em aprendizagem, entender o que é um PPP (Projeto Político-Pedagógico). Há quem entre na escola sem saber o que é a BNCC, e isso é preocupante. Essas perguntas em um processo seletivo já podem fazer a diferença.”
A formação em serviço e o contato com outros profissionais da rede de garantia de direitos também são outras recomendações de Valéria. “Eu tive a experiência de atuar com uma equipe formada por outros psicólogos, pedagogos, fonoaudiólogos, assistentes sociais. Ali, pudemos pensar na dupla psicólogo e assistente social para trabalhar em um número determinado de escolas em São Paulo, que eram supervisionadas semanalmente, com encaminhamentos para a rede de proteção”, relembra.
“Contávamos, também, com formações específicas a partir das demandas das escolas. E apareceram assuntos diversos, de gravidez da adolescência até questões ligadas à educação especial, e discutimos com profissionais que estudam essas questões. É preciso contar com uma equipe que levante as demandas de formação e encaminhe esses profissionais.”
Embora a Lei 13.935 não esteja vigente em todos os estados brasileiros, sendo aplicada efetivamente em apenas 85 dos mais de 5 mil municípios, é urgente que diretores e coordenadores escolares solicitem a seus representantes locais a implementação da lei, conforme recomenda a psicóloga.
Fonte: Portal Porvir - Ana Luísa DMaschio