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Ensino remoto é difícil, mas já pensou como é a alfabetização a distância? Veja estratégias

Especialistas citam atividades alternativas para manter crianças engajadas com o processo de aprendizado, que não deve ser encarado como algo exclusivo da escola

O processo educacional em 2020 foi marcado por inúmeros momentos que demandaram a reinvenção de métodos e estratégias para contornar alguns desafios, como a questão do acesso a equipamentos e internet, por exemplo. A motivação dos alunos também foi uma questão amplamente debatida pelos professores. Se foi difícil manter o engajamento dos que já são alfabetizados, o que dizer de quem ainda está no processo de aprendizado dos números e letras?

No Brasil, espera-se que as crianças estejam alfabetizadas até o final do segundo ano do ensino fundamental 1 e uma das condições fundamentais para que essa meta seja alcançada é a mediação do professor especialista, que cria situações para que os alunos façam uso das habilidades que já possuem para aprender aquilo que ainda não sabem.

Para Marta Durante, diretora pedagógica da Camino Education, todo esse movimento foi prejudicado pela pandemia, sobretudo considerando que a conectividade e acesso a equipamentos não é a realidade da maioria dos estudantes brasileiros, sobretudo aqueles da rede pública de ensino.

Nesse sentido, a especialista cita alternativas. “Algumas instituições públicas organizaram kits para as crianças realizarem atividades, como cantar músicas, pensar com que letra começa determinada palavra, encontrar uma palavra em uma frase, fazer caça-palavras. São situações em que elas podem pensar no sistema de escrita ao mesmo tempo em que têm a sensação de que estão brincando.”

Reforçar esse lado lúdico também consiste em um caminho para diminuir o peso e tornar o processo de alfabetização mais leve e prazeroso. “Existe um universo de coisas que podem ser feitas em casa, entre propostas muito mais bacanas e divertidas do que essa ideia de ficar ensinando sílabas e letras. Quando pensamos na alfabetização como uma imersão no mundo da escrita e em situações em que as crianças vão se colocar como leitoras e escritoras antes mesmo de saber ler e escrever, são muitas as possibilidades de fazer coisas que têm a ver com elas.”

Mais qualidade, menos quantidade

Outro ponto fundamental citado por Marta é priorizar a qualidade em relação à quantidade das atividades propostas. Como em outras situações, aqui menos também é mais. A ideia é encontrar caminhos para qualificar a relação entre o aluno e o professor, e, para isso, uma alternativa é, para aquelas instituições que conseguem realizar atividades online, dividir a turma em grupos menores, usando os chamados textos que sabem de memória – cantigas, parlendas e outras músicas.

“Se em três vezes da semana estou com o grupo todo, nos outros dias posso criar grupos menores. Assim, vou poder interagir com menos crianças e fazer uma reflexão mais específica, para poder entender realmente quem não está avançando. No ano passado, na Camino School, a professora de Língua Portuguesa pedia para que os alunos mostrassem na câmera mesmo o que escreveram no papel. Se fosse um grupo de 30, isso não seria possível. Mas com essa divisão, o professor consegue compreender em qual hipótese cada um está a partir da forma como escreveu.”

Esse processo faz parte das chamadas atividades diagnósticas, tidas como fundamentais para que os professores entendam quais são as facilidades e dificuldades dos alunos e possam fazer intervenções mais direcionadas e apoiar o avanço no processo de ensino-aprendizagem. Para aqueles que estão aquém do esperado em termos de aprendizado, Marta reforça a importância e necessidade de um trabalho mais direcionado e intencional, envolvendo acompanhamentos individualizados.

Uma ferramenta que pode ajudar no processo de reflexão sobre a escrita é a construção de um kit de fichas com o nome dos colegas da turma, dos animais que o grupo está estudando, com letras de músicas e receitas de comida, poemas e cantigas. “A ideia é que seja um instrumento que possa ser usado como informativo e não para cópia. Elas podem pensar: ‘se macaco escreve assim, como escreve Maria?’. É um material que pode ajudá-las a pensar nesses desafios.”

Como manter a motivação

“Eu ouvi o depoimento de uma criança no ano passado que começou o processo de leitura e escrita quase junto com a pandemia. Ela estava superanimada, mas com o ensino remoto, meio que ‘perdeu o pique’. Com o novo ano, ela criou um novo fôlego. Mas quando viu que tinha perdido o fio, foi mais difícil e ficou para trás, já que ‘não tinha porque aprender a ler e escrever já que não ia mais para a escola’”. Esse caso narrado por Renata Frauendorf, doutoranda em educação e coordenadora de projetos do Instituto Avisa Lá, representa mais um dos desafios no processo de alfabetização em meio ao ensino remoto: manter a motivação.

Para a especialista, a questão envolve desvincular o aprendizado a algo exclusivamente relacionado à escola. “Mais do que nunca, acredito que entra no papel da família conversar com seus filhos sobre o quanto a leitura e escrita vão além da escola. Precisamos mostrar que nem tudo está perdido, e que é importante, sim, que os estudantes estejam nesse espaço remoto, fazendo as atividades propostas”, explica.

Segundo Renata, é importante que a alfabetização não seja compreendida como “aquisição de uma técnica”, uma vez que, nesse caso, o aprendizado só seria possível com a presença do detentor dessa técnica, isto é, o professor. A ideia é pensar na alfabetização como um processo de aquisição dessa linhagem, a partir de situações nas quais as crianças participam de forma ativa e estão imersas na cultura escrita.

“Precisamos compreender que existem situações em casa que são extremamente potentes para essas crianças pensarem sobre a leitura e escrita, que vão para muito além da escola.” Nesse processo, a família é de extrema importância e elo fundamental para que exista toda uma organização do ambiente que facilite e encoraje a aprendizagem.

Interação entre pares

Renata também aponta que a ausência da escola de forma presencial também dificulta a interação entre as crianças, sobretudo as menores, e com professores e outros adultos, o que, por sua vez, atrapalha as condições para a alfabetização. Nesse sentido, destaca a iniciativa de alguns professores de criarem pequenos grupos em ferramentas como WhatsApp e, em chamadas de vídeo, criam espaço para que os alunos pensem e troquem o que estão pensando e vivendo.

“Acredito que um desafio gigante não só na alfabetização, mas também em outros segmentos como na universidade, é reconectar os estudantes a esse lugar de aprender. É possível, por exemplo, escreverem juntos a legenda de uma foto, pensar em uma lista de coisas que querem fazer quando voltarem à escola ou quando puderem circular pela cidade novamente, escrever uma lista de desejos – o que pode ajudar a abrir possibilidades de futuro –, pensar sobre o que gostaram ou não de experiências do ano passado, escrever uma carta para um parente que não está vendo, observar e anotar algo plantado no jardim. São alternativas para que o professor também vá além de ensinar tal letra”, exemplifica Renata.

Ir na contramão de mensagens pessimistas também é uma estratégia válida, segundo a especialista. Ela reforça que é muito prejudicial que estudantes ouçam que o ano passado foi perdido. Por isso, é importante retomar o que houve de aprendizado e experiências, refletir sobre como tudo isso foi importante e como pode-se repensar práticas não tão boas. “É possível fazer isso com crianças pequenas, elas são muito mais abertas a conversar do que nós imaginamos.”

O desafio de conciliar remoto e presencial

Mais do que pensar em formas de conciliar o ensino remoto com o presencial – já que muitas escolas adotaram, principalmente no começo do ano, o rodízio de estudantes – Marta explica que deve-se planejar atividades próprias para cada momento. Para aqueles que estão em casa, os momentos assíncronos podem ser destinados a desafios, pesquisas e atividades de investigação, deixando para que as propostas mais complexas, que demandam intervenção do professor, sejam realizadas quando esse grupo estiver presencialmente na escola. “Não dá mais para termos atividades de cópia e sem sentido. Agora, mais do que nunca, as metodologias ativas precisam ser usadas”, defende.

Renata, por sua vez, aponta a importância de escolas ou redes fazerem um mapeamento de alunos que ficaram inacessíveis durante a pandemia e tiveram pouco ou nenhum contato com a escola, de forma a criar uma lista de prioridades a serem atendidas quando for possível retomar as atividades. “É importante mapear aqueles que continuam à margem para pensar no acolhimento e em situações de leitura e escrita que façam parte de seu dia a dia. Nesse processo, não podemos deixar de pensar em avaliações diagnósticas”, explica.

Entretanto, a coordenadora do Instituto Avisa Lá deixa claro que acredita ser mais efetivo reforçar aquilo que os alunos já sabem do que direcionar a atenção para o que não sabem e não aprenderam. “Se fizermos levantamentos sobre o que as crianças não sabem, não conseguimos dialogar com o saber que elas já têm. O Avisa Lá segue muito essa ideia de, a partir do que cada um já sabe, fazer propostas para que possam avançar. Entrar em um jogo sabendo do que ela não sabe é um fato de desânimo. A maior questão nesse momento é resgatar o desejo de aprender e pensar em leitura e escrita.”

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Fonte: Portal Porvir - Maria Victória Oliveira

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