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Educação integral: por que definir bem o conceito é essencial para a prática?

Entre o conceito com diferentes interpretações e sua implementação no dia a dia, pesquisador aponta caminhos para uma abordagem mais efetiva da educação integral

No Brasil, falamos sobre educação integral no nosso cotidiano: na pedagogia, em políticas educacionais, na mídia, na publicidade das escolas privadas, em livros e palestras. Considerando esse panorama, não é exagero afirmar que o termo faz parte do senso comum da nossa sociedade, influenciando? direta ou indiretamente? o dia a dia das escolas frequentadas por nossos filhos, as organizações em que trabalhamos, as instituições educativas de nossos bairros, de nossas cidades, nossas concepções e conversas sobre educação e até mesmo em quem votamos.

Por ser tão amplamente utilizado, o entendimento sobre educação integral corre o risco de se tornar superficial ou controverso. Afinal, noções que são utilizadas de modo genérico e vago correm o risco de cair em jargões vazios e, com isso, perderem a capacidade de iluminar nossas reflexões e discussões. Daí, em vez de esclarecer, passam a confundir.

Nesse cenário nebuloso, o selo educação integral é empregado por diferentes atores com significados bastante distintos, resultando em dissonâncias semânticas e divergências relacionadas a práticas e políticas educacionais. Tais significados não são necessariamente contraditórios entre si, porém, ao utilizarmos as mesmas palavras para nos referir a muitas coisas diferentes, tendemos a cair em mal-entendidos indesejáveis.

Em face dessa miscelânea de significados, realizei uma tese de doutorado na Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo), cuja conclusão ocorreu recentemente, em agosto de 2024. A pesquisa surgiu após eu me deparar com um “compromisso com a educação integral” na introdução da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), o que me impeliu a formular os seguintes questionamentos:

1. Como se deu o processo de promoção da temática da educação integral no debate educacional brasileiro, ao ponto de se declarar explicitamente um “compromisso com a educação integral” na introdução da BNCC?

2. Ao longo desse percurso, quais as principais ideias presentes nos debates sobre educação integral no Brasil?

3. Entre essas ideias, quais se mostram mais pertinentes?

Ou seja, partir de um ponto bastante preciso ? a BNCC ? e, ancorando-me nessa referência, retroagi historicamente, buscando conexões significativas entre acontecimentos e atores-chave. Como não seria razoável realizar uma regressão longa, estabeleci um marco de término para tal percurso retrospectivo: por isso, defini que o intervalo temporal da pesquisa seria da BNCC (2018) até a Constituição (1988), delimitando um período de três décadas.

Por meio de uma investigação amparada na leitura da bibliografia sobre o tema, consulta a documentos e uma ampla lista de entrevistas com atores-chave e reflexões, acredito ter desenvolvido análises bem fundamentadas e profundas sobre o tema da educação no Brasil.

Principais conclusões

A partir do estudo das principais iniciativas ligadas à educação integral nas três décadas estudadas – CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública) no Rio de Janeiro; o crescente envolvimento de ONGs e da importância do território na educação; o Programa Mais Educação; o caso de Pernambuco; a tendência da educação por competências, a BNCC –, identifiquei quatro ideias principais:

• Ampliação do tempo escolar;
• Ampliação do repertório;
• Ampliação das dimensões humanas consideradas na educação;
• Iniciativas de integração.

Na tese, analiso mais detidamente cada uma dessas ideias. Aos que tiverem interesse em maiores detalhes, recomendo a leitura. Neste artigo, dedicarei atenção exclusiva às iniciativas de integração.

Se tivermos como critério apenas o aumento quantitativo da jornada, da diversidade de experiências promovidas e das dimensões humanas consideradas na educação, iremos concluir que um garoto que passa o dia inteiro sendo “formado” para no futuro se tornar um líder do tráfico de drogas tem o privilégio de receber uma boa educação: afinal, é bastante grande a quantidade de tempo e de experiências diversas que ele vive e que inclusive o “formam” em várias dimensões – isto é, não apenas intelectual (entender estratégias, finanças, logística, etc.), mas também emocional (autocontrole, assertividade em decisões), social (interações complexas, articulação com diversos tipos de pessoas), política (liderança, gestão de pessoas, tenso relacionamento com instituições, etc.).

O exemplo é propositadamente exagerado com o objetivo de enfatizar o argumento de que considerar simplesmente o aumento quantitativo do tempo, do repertório e/ou das dimensões humanas consideradas não nos oferece respostas satisfatórias em relação ao tema da educação integral.

Tais elementos só se tornam consistentemente coerentes quando vinculados a boas finalidades. E, há boas perspectivas e iniciativas que propõem finalidades de integração, que são verdadeiros vetores que organizam intencionalmente as iniciativas educacionais, orientando-as a determinados fins. Assim, os incrementos não serão meramente quantitativos, o que potencialmente tenderia à dispersão, desintegração e, como consequência, exaustão dos estudantes.

E, para efetivar de modo prático tais finalidades, o que podemos fazer?

Para oferecer finalidades verdadeiramente orientadas à pessoa, a proposta de realização de mentorias me parece o caminho com maior potencial. Ou seja, em vez de criarmos novas disciplinas complementares sobre competências socioemocionais, projeto de vida, etc., seria mais efetivo promovermos tempos e espaços para que educadores pudessem conversar individualmente com cada estudante, num clima de confiança e genuíno comprometimento pelo seu desenvolvimento pleno.

Mentorias que abordem, por exemplo, o rendimento acadêmico nas disciplinas, a convivência com os colegas de classe e os familiares, os projetos de vida e profissional, ideais e propósitos, cultivo de hábitos culturais, entre vários outros assuntos, ofereceriam um canal em que os diversos âmbitos da formação da pessoa poderiam adquirir um sentido mais claro, estabelecido por quem mais importa: o próprio estudante.

Certamente, isso demanda importantes aprofundamentos e aperfeiçoamentos nas condições de trabalho docente – ajudaria muito se o professor atuasse em tempo integral na mesma escola, assim, podendo conhecer melhor seus alunos e a respectiva comunidade –, na formação pedagógica e ética, desses educadores, e assim por diante. Ou seja, demanda mudanças de concepção e de práticas, o que é bastante trabalhoso. Mas, afinal, é justamente sobre isso que estamos falando: qualificar de um modo mais profundo – e, portanto, mais efetivo –, nem que seja mais trabalhoso, a educação das nossas próximas gerações.

O importante é apontarmos de modo claro as finalidades em jogo, inclusive visando contribuir em processos de tomada de decisões que determinam investimentos (alocação de pessoas; aspectos financeiros; dispêndio de tempo e energia, etc.) em educação: afinal, queremos promover iniciativas que realmente possuem o potencial de concretizar uma educação mais integral ou estamos, pelo contrário, desperdiçando recursos em ações que tendem à dispersão e à fragmentação da educação?

Se quisermos encarar de modo profundo o desafio de promover uma educação verdadeiramente integral, para além dos jargões, esse tipo de pergunta é essencial.

Guilherme Melo de Freitas - Pesquisador em políticas educacionais, é doutor em Educação pela USP (Universidade de São Paulo) e gerente de Educação no Instituto Sivis.

Fonte: Portal Porvir - Guilherme Melo de Freitas

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