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Altas habilidades e superdotação: como a escola pode incluir os estudantes

Pessoas com altas habilidades e superdotação também são foco da educação inclusiva, mas por vezes o tema acaba ficando de fora das discussões

A filha da jornalista Luara Nogueira* desde muito nova repetia para a mãe: “Eu preciso de mais desafios”. A escola que ela frequentava não lhe dava estímulos suficientes para suprir toda a sua curiosidade e rapidez de raciocínio.

Essa relação fez com que a menina trocasse de escola muitas vezes ao longo da vida. Em 2022, quando tinha 14 anos, ela foi identificada como alguém com altas habilidades, algo que a família já suspeitava.

De acordo com o Censo Escolar 2021, existem 26.815 estudantes identificados com altas habilidades ou superdotação nas escolas brasileiras. Este número pode ser ainda maior, visto que a identificação de muitas pessoas acaba não acontecendo, o que torna o próprio tema invisibilizado.

Fabiane Navega, professora do curso de pedagogia do Centro Universitário de Paulínia (SP) e especialista em educação especial, pontua que pessoas com altas habilidades ou superdotação fazem parte de um grupo muito heterogêneo, com graus também variados. Não é possível colocá-las em caixinhas. Ela explica que existem diferentes tipos de inteligência e isso também está presente nos casos de altas habilidades.

“Isso por um lado dificulta a escola de reconhecer essas crianças [com altas habilidades], por serem tão diferentes umas das outras. A escola fica esperando encontrar dentro da sala de aula um gênio e às vezes desconsidera pequenas potencialidades”, afirma.

No caso de Guilherme, filho da publicitária Rita*, a identificação veio ainda bem cedo, quando foi diagnosticado com TEA (Transtorno do Espectro Autista). “Semana passada, ele veio me contar sobre a translação da Terra e eu precisei dar um Google pra lembrar o que era.” Guilherme tem sete anos e está no primeiro ano do ensino fundamental em uma turma regular.

Segundo a Política Nacional de Educação Especial, de 2008, quem é identificado com altas habilidades demonstra potencial elevado nas áreas acadêmica, intelectual, liderança, psicomotora e artes de forma isolada ou combinada. “Também apresentam elevada criatividade, grande envolvimento na aprendizagem e realização de tarefas em áreas de seu interesse”, descreve o texto.

Como as escolas se preparam para incluir essas crianças

A subnotificação não é o único fator que dificulta o acolhimento e atendimento adequado às crianças com altas habilidades. Carolina Videira, especialista em educação inclusiva e coordenadora de pós-graduação no Instituto Singularidades, comenta que geralmente a educação especial na perspectiva inclusiva foca bastante em alunos com deficiência, com transtornos globais ou no espectro autista, e nem sempre olha com a atenção devida para as altas habilidades.

“Outro desafio na inclusão desse público é que se espera do alto habilidoso um perfil específico, como se ele tivesse que ser aquele gênio da matemática ou da língua portuguesa, alguém que se destaca nas hard skills (habilidades concretas). Isso também é uma inverdade”, diz a especialista. Sobre essa expectativa, ela afirma ser comum que essas crianças sejam taxadas de desinteressadas ou problemáticas. “A gente precisa entender que a criança que tem altas habilidades não é apenas aquela que tira notas altas na escola.”

Essa postura reflete na maneira como os docentes tratam essas crianças, adolescentes e jovens. Luara lembra que certa vez sua filha chegou bastante frustrada do colégio. Ela, que ama estudar, havia recebido uma resposta um tanto quanto equivocada da parte do professor de matemática. Após terminar a lição – um pouco mais rápido que os demais colegas – a estudante pediu ao professor que lhe desse algo novo para fazer, e ele pediu para que ela fosse dormir.

“Eu cheguei a ouvir de uma coordenadora que muitos professores se sentem ameaçados”, conta a jornalista. Ela, no entanto, não ignora que é um desafio muito grande para os educadores, visto que a preparação para as aulas deve ser bastante distinta. “Muitos preparam uma atividade com previsão para ser concluída em vinte minutos, e um aluno com altas habilidades pode resolver em um terço do tempo”, comenta.

Fabiane comenta também que existe um outro entrave, a espera da escola por um diagnóstico. “Quando a gente trabalha com altas habilidades, não falamos de diagnóstico, mas sim de identificação, porque elas não têm um CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde), não é um transtorno ou uma doença”, afirma. “O ideal seria que a escola muito precocemente reconhecesse esses comportamentos acima da média e buscasse encaminhar essas crianças para uma avaliação neuropsicológica e pedagógica, que são as responsáveis por fazer essa detecção”, completa.

O que é fundamental que o professor saiba

Carolina Videira destaca que uma chave fundamental para incluir os estudantes com altas habilidades é ter sensibilidade. Quando Guilherme foi para uma nova escola, relembra a publicitária Rita, a postura de uma das professoras foi essencial para o aprendizado. Um gesto simples: a professora de artes pediu para que a mãe trocasse o estojo do garoto, pois o que ele usava o deixava impaciente e ele tinha dificuldade em encontrar as cores solicitadas. Para que ele não ficasse para trás, montou ela mesma um estojo até que o menino tivesse o próprio.

Guilherme, que também é daltônico, precisava desse olhar mais atento da professora. O fato é que não se trata apenas dele. Muitas ações inclusivas surgem a partir de uma percepção mais apurada dos docentes.

Existem diferentes formas de abordar ou atuar com estudantes que possuem altas habilidades. O PDIE (Plano de Desenvolvimento Individual e Escolar) deve servir como um parâmetro ao que cada estudante precisa.

Rita comenta que é muito positivo quando recebe da escola algum recado informando que algo não ocorreu como seu filho esperava, mas como deveria ter sido feito. “É muito bom saber que não usam as altas habilidades dele como desculpa para ele fazer o que quiser”, afirma.

Luara diz que algo que lhe incomoda é os professores identificarem a superdotação de um estudante e automaticamente acharem que eles precisam de menos ajuda ou podem aprender tudo sozinhos. Fabiane também é contra esse tipo de comportamento, refletindo que a educação acaba não se concretizando quando isso ocorre.

Guilherme, por exemplo, se sente bem na figura de auxiliar da turma. As características individuais dele – tanto como alguém que está no espectro autista, quanto quem tem altas habilidades – fazem com que ele goste de ensinar os colegas. Sempre que termina a lição primeiro, ele se dispõe a ajudar os demais. O estudante também prepara apresentações sobre temas de seu interesse e essa disposição é recebida e endossada pela turma.

No entanto, nem todas as pessoas com altas habilidades são assim. Por isso, o PDIE é fundamental. “O PDIE baseia-se no conhecimento sobre o estudante, na identificação de seus potenciais, dos desafios a superar e das condições que concorrem para sua aprendizagem, desenvolvimento e inclusão na escola e na sociedade”, aponta a Diretriz específica para o atendimento de estudantes com altas habilidades, documento orientador desenvolvido pelo CNE (Conselho Nacional de Educação).

Ao se referir a alguém com altas habilidades como quem é capaz de ensinar tudo, coloca-se sobre os ombros dessa pessoa uma responsabilidade que ela não possui, reflete Luara.

“Minha filha passou a vida inteira sendo auxiliar do professor para ensinar o amiguinho que tinha dificuldade. E não é que ela não goste de fazer isso – ela acabou desenvolvendo uma boa didática por conta disso –, mas tem que ser uma coisa espontânea do aluno que tem altas habilidades. Nem toda criança com superdotação tem didática, paciência ou afinidade para ensinar”, diz.

Altas habilidades e superdotação na legislação educacional brasileira

Desde dezembro de 1961, com a lei que fixou as Diretrizes e Bases da Educação, o termo “Educação dos Excepcionais”, compreendido dentro da educação especial, já vinha sendo utilizado. Em 1967, o MEC (Ministério da Educação) também instalou uma portaria que deveria se debruçar sobre a identificação e atendimento de estudantes superdotados.

De lá para cá, muitas alterações e modificações nas Diretrizes e Bases incluíram os termos da superdotação e altas habilidades nos contextos de aprendizagem. O artigo 9º da lei 5.692, de 11 de agosto de 1971, indicou os alunos que fariam parte da educação especial, entre eles os considerados superdotados. Em 1986, na Portaria CENESP/MEC nº 69, houve uma mudança na nomenclatura de “alunos excepcionais”, para “alunos portadores de necessidades educacionais especiais”.

O conceito de superdotação e altas habilidades surgiu pela primeira vez na Política Nacional de Educação Especial de 1994. No mesmo ano, o Brasil se tornou signatário da Declaração de Salamanca (Unesco), que colocava os estudantes com altas habilidades entre o público que se beneficiaria de políticas públicas de educação inclusiva.

Além da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva inclusiva, de 2008, há a “Diretriz específica para o atendimento de estudantes com altas habilidades”, desenvolvida pelo CNE (Conselho Nacional de Educação) em 2022. O texto traz contextualização das principais pesquisas e orientações sobre como atender e identificar esse público nas suas diversas possibilidades: intelectual, artística, motora, de liderança etc., além de trazer informações que auxiliam os professores a ajudar na identificação dessas pessoas.

Formação e complementação 

A dificuldade em pensar maneiras de trabalhar com estudantes com altas habilidades tem por trás uma ausência de formação sobre o tema. “Eu vejo que a escola tem um olhar muito maior para a questão do autismo e das crianças com deficiência, então quando falam de inclusão na escola, estão pensando nesse público e esquecem que o grupo de altas habilidades e superdotação faz parte da Educação Especial, que ele está dentro da sala de aula”, diz a professora Fabiane.

A docente, que também é mãe de uma criança com altas habilidades, destaca que a mudança e a inclusão do tema nas formações devem ser orientadas pelo MEC, por meio de uma política pública que preveja também a adição das altas habilidades nos currículos dos cursos de pedagogia e licenciaturas.

Ao mesmo tempo, Fabiane diz que ainda existem poucos cursos de formação continuada que lidam diretamente com o assunto, e fomentá-los também é preciso. “No caso das altas habilidades, temos um problema que é achar que elas não estão na escola, e então o profissional não busca se aperfeiçoar no assunto”, reflete.

Carolina Videira, que é fundadora da Turma do Jiló, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que se dedica a questões de diversidade e inclusão, diz que é preciso que os professores reflitam sobre a “ensinagem”. Professora em um curso de pós-graduação com foco em inclusão e diversidade, ela afirma que muitos chegam na aula esperando aprender sobre pessoas com deficiência e saem com um universo expandido, entendendo sobre a inclusão de outras pessoas, como é o caso das que possuem superdotação.

A especialista ainda comenta que muitas vezes o foco desses profissionais está na aprendizagem, em como os estudantes lidam com o conhecimento proposto em sala de aula. No entanto, ela ressalta, é igualmente válido pensar a respeito da maneira como se ensina, e isso é parte fundamental da postura de educadores inclusivos.

Asteriscos

Os nomes das personagens desta reportagem marcados com asteriscos foram alterados ou suprimidos a pedido das entrevistadas. Trata-se de uma postura de proteção familiar, o que também evidencia a necessidade de trazer ainda mais o tema para o debate em sala de aula.

Muitas crianças com altas habilidades – como é o caso da filha de Luara – preferem que colegas não saibam disso para evitar serem tratados de forma diferente ou sofrer algum tipo de bullying.

A professora Fabiane comenta ser comum que pessoas com altas habilidades sejam excluídas ou que se “autossabotem” na intenção de mascarar esse aspecto de suas vidas e, com isso, chamar menos atenção ou “não atrapalhar a aula”. Luara conta que a filha se tornou menos participativa na classe: “Ela começou a ficar quieta, não participava mais. E aí a escola também virou aquele espaço entediante”, diz.

Família, escola e sociedade 

A educação é um papel que extrapola a escola. Luara conta que traz para o colégio sugestões que a neuropsicóloga de sua filha recomenda para que ela possa vivenciar melhor o que aprende na escola.

Esse diálogo é importante para garantir que a educação inclusiva esteja de fato ocorrendo. “Hoje em dia eu coloco a neuropsicóloga da minha filha em contato com a coordenação, com a diretora da escola”, afirma.

Para a especialista Fabiane Navega, “a família é a maior conhecedora das crianças, geralmente é ela que identifica as altas habilidades”. E, nesse sentido, ela indica que ouvir as famílias e ter essa abertura pode agregar muito ao trabalho da escola.

“Às vezes algumas escolas são um pouco mais resistentes a isso e então fica um pouco complicado, porque sabemos que são dois grupos que precisam ter uma parceria muito interessante, muito fluida e muito saudável para que aquela criança seja beneficiada”, diz.

Por ser uma questão de múltiplas áreas como família, educação e saúde, o trabalho em conjunto é o que possibilita que a educação inclusiva aconteça de maneira plena, concordam as entrevistadas. 

Fone: Portal Porvir - Ruam Oliveira

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